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Palavra ? ! '' ... :-o

Camila Vermelho


No ensaio "Filosofia da Composição" (1846), Edgar Allan Poe (1809-1849) generosamente dissecou o seu método de escritura, especialmente no caso do poema "O Corvo" (1845). Dentre tantas passagens que merecem atenção no ensaio, Poe descreve o uso repetido que escolheu fazer da sentença proferida pelo corvo ao jovem angustiado: "nunca mais". À medida que o poema transcorre, cada "nunca mais" pronunciado tem um significado diferente. Ou seja, "nunca mais" é um exemplo perfeito do poder e da complexidade da palavra. Seus usos, suas ênfases, suas apropriações, suas intenções ou até mesmo sua omissão.

A arte de não se trair

Palavras podem ser e representar muitas coisas. As variáveis são praticamente infinitas para o parto, a vida e a morte das palavras. Cultura, inserção social, condições materiais de existência, educação, acesso à arte, meios de comunicação, experiências, afetos. Além de anos de história da humanidade. Então, tomemos por exemplo inicial os antigos filósofos gregos e os cidadãos da Roma Republicana, com seus exercícios de retórica, desenvolvendo a arte de bem articular e defender ideias e palavras.

Arte a qual, ultimamente, parece que tem sido profanada na história do Brasil e do Mundo, com a profusão de palavras corrosivas e nocivas que ferem, desarticuladas, feito grunhidos desesperados de animais feridos ou que estão prestes a atacar a presa ou o inimigo. Palavras com sentidos absurdos, mas não sem propósito. A vida pode ser maior do que as palavras e as gramáticas, mas com o conhecimento e o uso delas é que se constrói o pensamento, a consciência de si e a sociedade em que se vive. Quem faz apologia deliberada à omissão do debate, do conhecimento, da escuta, da fala e da escrita é quem defende o desconhecimento, a ignorância, a barbárie e a submissão.

E, por falar no meio em que se vive, a família é um dos maiores ninhos das palavras e da criação de sentidos. Na minha família, que possui muitas pessoas evangélicas, aprendi que a palavra pode abençoar ou amaldiçoar. Segundo o que também ouvi de alguns pastores, em cultos que participei com tios, tias, primos e primas. Prova disso é o WhatsApp da família, que é um compartilhamento vertiginoso de fake news, piadas infames com todos os tipos de discriminações e, por outro lado, mensagens abençoadas de bom dia e de boa noite, com citações bíblicas ilustradas com imagens produzidas por Photoshop. Bem, pelo menos era assim, quando eu ainda fazia parte da rede virtual da família. Mas, pelo que tenho acompanhado através do smartphone da minha mãe, nada mudou. Talvez tenha até se acentuado. E, por essas e outras, honro as palavras populares: "Deus está vendo". Expressão que, por sua vez, é polissêmica, cheia de sentidos.

Todo dia é um dia novo

A palavra enuncia, evoca, conforta, provoca, oculta, revela, distorce, contorce, aparece, desaparece, constrói, destrói, sonha, transforma. A palavra se transfigura, ao mesmo tempo, naquilo que se quer traduzir palpavelmente do pensamento e dos sentimentos, ao passo que limitando-os. Mas é imprescindível. Feito as histórias de amor, que insistem em acontecer mesmo diante de tantas decepções da vida. E, como afirmava Pablo Neruda (1904-1973):

"Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca ideias."


A palavra escrita, falada, pensada, transmutada em imagens - feito o cantor Prince que, em rebelião à grande indústria fonográfica, converteu seu nome num símbolo impronunciável - tem um poder gigantesco. Poder que reside em cada pessoa. Todas e todos nós devemos ter o compromisso com as palavras da nossa sociedade. Devemos ser responsáveis e não colocar apenas sobre o outro e a outra algo que começa em cada um e cada uma de nós. Quem sabe assim a letra substitua a bala do revólver.

Paisagem na neblina

Você! Você que chegou até aqui e está lendo estas palavras agora! Eu estou me expondo, correndo o risco de ser julgada. Porém, numa boa democracia, este é o jogo. Discordar também é necessário. Essencial! Para isso, os dados estão lançados e já comecei com o meu compromisso, com as minhas palavras, pensadas em cada letra aqui posta. Atrevimento, não?

Por falar em atrevimento, gostaria de citar uma grande amiga e poetisa de Uruguaiana, Karina Maia, a criadora do Sarau dxs Atrevidxs. Com as suas primeiras palavras que escreveu aos 15 anos de idade, enquanto consciente de que prosseguiria com a poesia:

"Já se alonga por demais indigno o porém recente sentimento."

"Nunca mais" dá para esquecer! 

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